O químico americano William Fenical tinha 12 anos quando decidiu que seu futuro seria explorar o fundo do mar. Ele estava mergulhando na Flórida, em férias com a família, e se impressionou com a vida debaixo d’água. Hoje, 47 anos e 3 mil horas de mergulho depois, Fenical é um dos fundadores de uma das áreas mais promissoras da ciência. Ele se dedica a descobrir novas drogas em organismos marinhos. Na semana passada, esteve no Brasil, em um evento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, para discutir o potencial brasileiro. “Como a costa do Brasil corta várias faixas climáticas, a biodiversidade é incrível”, afirma. O problema, diz, é que o governo, com medo da biopirataria, espanta os cientistas. “No Brasil, os pesquisadores enfrentam barreiras exageradas para fazer esse tipo de estudo.”
William Fenical tem 59 anos, mora na cidade de Del Mar, na Califórnia. É diretor do Centro de Biotecnologia Marinha e Biomedicina da Universidade da Califórnia em San Diego. É o fundador da empresa Nereus Pharmaceuticals Inc.Isolou moléculas anticancerígenas em fase de teste. Descobriu um anti-inflamatório extraído de corais usado pela marca de cosméticos Estée Lauder
O senhor afirma que os novos medicamentos virão dos oceanos. As moléculas encontradas em plantas, animais, bactérias e fungos foram selecionadas pela natureza durante milhões de anos para desempenhar um papel específico. Elas resistiram à seleção natural porque são muito eficazes na sua função. Por isso, há muito mais chances de elas conseguirem combater doenças do que as moléculas criadas artificialmente pelos humanos nos laboratórios das indústrias farmacêuticas. E nos oceanos encontramos a maior diversidade de espécies. Em todo o planeta, existem 35 filos (termo científico para designar a divisão de organismos em grandes grupos, de acordo com características em comum). Em terra, encontramos seres vivos de apenas 17 filos. No oceano estão representados 33 filos.
Quais são os organismos marinhos com maior potencial para a indústria farmacéutica? Desde esponjas e moluscos até plantas e corais. Os organismos marinhos são geneticamente diferentes porque vivem em um ambiente que exige outro tipo de característica. Por isso, são grandes as chances de que eles produzam compostos químicos únicos. Eles são uma oportunidade de desenvolver drogas em uma variedade de áreas que nunca foram exploradas antes porque só havíamos pesquisado na Terra. Mal faz duas décadas que um pequeno grupo de cientistas começou a estudar o fundo do mar.
Por que demoramos tanto para aproveitar o potencial do oceano?
Primeiro, porque é mais difícil. Exige infraestrutura, técnicas e conhecimentos diferentes. Apenas pessoas com muita experiência e uma formação específica são capazes de fazer esse tipo de trabalho. Em segundo lugar, há décadas a indústria farmacêutica prefere descobrir novas drogas por tentativa e erro no laboratório, modificando e recombinando moléculas. Os pesquisadores criam milhares dessas moléculas sintéticas e testam quais delas seriam capazes de combater uma doença. O resultado desse processo é que, nos últimos 15 anos, não surgiu nenhum antibiótico totalmente novo, com exceção de dois (linezolida e daptomicina, contra bactérias super-resistentes). Algumas empresas só têm apenas uma droga para vender e não têm mais nenhum lançamento inteiramente novo em vista. É por isso que estão acontecendo tantas fusões na indústria farmacêutica. E veremos ainda mais: as empresas estão sem produtos, os lucros estão diminuindo, e eles estão preocupados com novas fontes de drogas. Como essas grandes empresas não têm agilidade para mudar seu modo de atuação, é provável que, no futuro, a exploração do fundo do mar fique com as pequenas empresas de biotecnologia. Isso já está acontecendo.
Já usamos algum medicamento vindo do mar? Já foi aprovada na Europa uma droga chamada Yondelis, extraída de um pequeno animal marinho. Outra droga que já está à venda é o Prialt, analgésico extraído de um molusco, que tem os mesmos efeitos da morfina. Há outras cerca de 20 moléculas em fase de testes em seres humanos que poderão ser usadas no futuro. Um exemplo é a salinosporamida A, produzida por uma bactéria encontrada nos sedimentos no fundo do oceano. Outro composto em desenvolvimento é derivado da halimida, obtida por meio da fermentação de um fungo encontrado no oceano.
Na semana passada, o senhor participou de um encontro acadêmico em São Paulo para discutir a produção de novas drogas a partir de compostos naturais. Qual é o potencial da costa brasileira? O Brasil tem uma costa que se estende de norte a sul. Parte da costa está em local quente, altamente tropical, e outra é banhada pelo oceano temperado. Considerando que as espécies vão mudando a cada cerca de 3.000 quilômetros, de acordo com a mudança de temperatura, é possível falar que existem diferentes oceanos no Brasil, com uma biodiversidade incrível. O problema é que o governo brasileiro estabelece barreiras exageradas para quem quer conduzir pesquisas usando a natureza.
Quais? Eu nunca tentei um acordo de bioprospecção com o governo brasileiro, mas muitos colegas pesquisadores já tentaram e, aparentemente, não tiveram sucesso. Minhas conclusões são, portanto, baseadas no que ouvi. O Brasil integra um grupo de países conhecidos internacionalmente por ser muito rigorosos para estabelecer acordos de cooperação envolvendo sua biodiversidade. Os governos desses países chegam a pedir 50% de todo o lucro obtido com qualquer droga que for produzida a partir de uma espécie encontrada no país. Eles exigem uma parcela enorme dos rendimentos sem fazer nada. Não investem, não partilham dos riscos de a pesquisa não dar certo. "Os governos de países como o Brasil querem 50% dos lucros de uma nova droga sem fazer nada. Querem uma parcela enorme. O padrão é 5%"
O Brasil deveria dar algo em troca? Eu não acho que o Brasil tem de dar coisa nenhuma. Acho que o Brasil simplesmente tem de aceitar os mecanismos de colaboração internacional, aceitar uma divisão justa dos lucros. Nos padrões internacionais, os pesquisadores costumam receber entre 2% e 5% de todo o lucro. Eles dividem metade com o país. Parece uma porcentagem pequena, mas considere que os lucros obtidos com uma droga podem chegar a US$ 9 bilhões anuais durante 17 anos. Os integrantes do governo brasileiro não estão informados sobre como funciona esse processo econômico de desenvolvimento de uma nova droga. Eles oferecem termos inaceitáveis, e os cientistas estrangeiros e as empresas vão embora.
Não é uma tentativa de proteger a biodiversidade do país para que ela não seja explorada sem que a população receba os dividendos?
Nenhum pesquisador estrangeiro quer ver um país ser explorado. Mas muitos países foram longe demais ao se proteger, pensando que todo o mundo quer explorá-los. Eu não critico a decisão do Brasil de proteger seus próprios recursos, é uma decisão que cabe ao país. Mas é fato que o Brasil não tem infraestrutura para desenvolver sozinho esse tipo de pesquisa. Descobrir um novo medicamento e colocá-lo no mercado custa US$ 1 bilhão. Como o Brasil vai algum dia desenvolver uma droga e ter lucros se não tem dinheiro para investir? Vocês deveriam firmar parcerias em que os cientistas brasileiros fossem beneficiados, em que houvesse uma troca de experiência e de técnicas. Talvez o governo tenha decidido esperar até que haja tecnologia suficiente no Brasil para que o país possa explorar esse potencial sozinho. A pergunta é: é isso mesmo que o Brasil quer?
Quais são as consequências de uma política tão restritiva para o uso da biodiversidade brasileira em pesquisas? O governo brasileiro desencorajou investimentos internacionais e desencorajou pessoas como eu, cientistas que têm muitas informações para compartilhar com os brasileiros, a trabalhar com o Brasil. A Austrália, há 15 anos, fez a mesma coisa: fechou o país para a colaboração internacional. Antes disso, tínhamos muitos pesquisadores australianos vindo para a Califórnia para aprender novas técnicas e trabalhar com a gente. Agora, não há praticamente nenhum. Esse tipo de postura tem um impacto enorme. Não afeta apenas o intercâmbio científico entre os países, entre a ciência americana e a brasileira. Mas também tem um impacto enorme na descoberta de novas drogas.
Revista Epoca
William Fenical tem 59 anos, mora na cidade de Del Mar, na Califórnia. É diretor do Centro de Biotecnologia Marinha e Biomedicina da Universidade da Califórnia em San Diego. É o fundador da empresa Nereus Pharmaceuticals Inc.Isolou moléculas anticancerígenas em fase de teste. Descobriu um anti-inflamatório extraído de corais usado pela marca de cosméticos Estée Lauder
O senhor afirma que os novos medicamentos virão dos oceanos. As moléculas encontradas em plantas, animais, bactérias e fungos foram selecionadas pela natureza durante milhões de anos para desempenhar um papel específico. Elas resistiram à seleção natural porque são muito eficazes na sua função. Por isso, há muito mais chances de elas conseguirem combater doenças do que as moléculas criadas artificialmente pelos humanos nos laboratórios das indústrias farmacêuticas. E nos oceanos encontramos a maior diversidade de espécies. Em todo o planeta, existem 35 filos (termo científico para designar a divisão de organismos em grandes grupos, de acordo com características em comum). Em terra, encontramos seres vivos de apenas 17 filos. No oceano estão representados 33 filos.
Quais são os organismos marinhos com maior potencial para a indústria farmacéutica? Desde esponjas e moluscos até plantas e corais. Os organismos marinhos são geneticamente diferentes porque vivem em um ambiente que exige outro tipo de característica. Por isso, são grandes as chances de que eles produzam compostos químicos únicos. Eles são uma oportunidade de desenvolver drogas em uma variedade de áreas que nunca foram exploradas antes porque só havíamos pesquisado na Terra. Mal faz duas décadas que um pequeno grupo de cientistas começou a estudar o fundo do mar.
Por que demoramos tanto para aproveitar o potencial do oceano?
Primeiro, porque é mais difícil. Exige infraestrutura, técnicas e conhecimentos diferentes. Apenas pessoas com muita experiência e uma formação específica são capazes de fazer esse tipo de trabalho. Em segundo lugar, há décadas a indústria farmacêutica prefere descobrir novas drogas por tentativa e erro no laboratório, modificando e recombinando moléculas. Os pesquisadores criam milhares dessas moléculas sintéticas e testam quais delas seriam capazes de combater uma doença. O resultado desse processo é que, nos últimos 15 anos, não surgiu nenhum antibiótico totalmente novo, com exceção de dois (linezolida e daptomicina, contra bactérias super-resistentes). Algumas empresas só têm apenas uma droga para vender e não têm mais nenhum lançamento inteiramente novo em vista. É por isso que estão acontecendo tantas fusões na indústria farmacêutica. E veremos ainda mais: as empresas estão sem produtos, os lucros estão diminuindo, e eles estão preocupados com novas fontes de drogas. Como essas grandes empresas não têm agilidade para mudar seu modo de atuação, é provável que, no futuro, a exploração do fundo do mar fique com as pequenas empresas de biotecnologia. Isso já está acontecendo.
Já usamos algum medicamento vindo do mar? Já foi aprovada na Europa uma droga chamada Yondelis, extraída de um pequeno animal marinho. Outra droga que já está à venda é o Prialt, analgésico extraído de um molusco, que tem os mesmos efeitos da morfina. Há outras cerca de 20 moléculas em fase de testes em seres humanos que poderão ser usadas no futuro. Um exemplo é a salinosporamida A, produzida por uma bactéria encontrada nos sedimentos no fundo do oceano. Outro composto em desenvolvimento é derivado da halimida, obtida por meio da fermentação de um fungo encontrado no oceano.
Na semana passada, o senhor participou de um encontro acadêmico em São Paulo para discutir a produção de novas drogas a partir de compostos naturais. Qual é o potencial da costa brasileira? O Brasil tem uma costa que se estende de norte a sul. Parte da costa está em local quente, altamente tropical, e outra é banhada pelo oceano temperado. Considerando que as espécies vão mudando a cada cerca de 3.000 quilômetros, de acordo com a mudança de temperatura, é possível falar que existem diferentes oceanos no Brasil, com uma biodiversidade incrível. O problema é que o governo brasileiro estabelece barreiras exageradas para quem quer conduzir pesquisas usando a natureza.
Quais? Eu nunca tentei um acordo de bioprospecção com o governo brasileiro, mas muitos colegas pesquisadores já tentaram e, aparentemente, não tiveram sucesso. Minhas conclusões são, portanto, baseadas no que ouvi. O Brasil integra um grupo de países conhecidos internacionalmente por ser muito rigorosos para estabelecer acordos de cooperação envolvendo sua biodiversidade. Os governos desses países chegam a pedir 50% de todo o lucro obtido com qualquer droga que for produzida a partir de uma espécie encontrada no país. Eles exigem uma parcela enorme dos rendimentos sem fazer nada. Não investem, não partilham dos riscos de a pesquisa não dar certo. "Os governos de países como o Brasil querem 50% dos lucros de uma nova droga sem fazer nada. Querem uma parcela enorme. O padrão é 5%"
O Brasil deveria dar algo em troca? Eu não acho que o Brasil tem de dar coisa nenhuma. Acho que o Brasil simplesmente tem de aceitar os mecanismos de colaboração internacional, aceitar uma divisão justa dos lucros. Nos padrões internacionais, os pesquisadores costumam receber entre 2% e 5% de todo o lucro. Eles dividem metade com o país. Parece uma porcentagem pequena, mas considere que os lucros obtidos com uma droga podem chegar a US$ 9 bilhões anuais durante 17 anos. Os integrantes do governo brasileiro não estão informados sobre como funciona esse processo econômico de desenvolvimento de uma nova droga. Eles oferecem termos inaceitáveis, e os cientistas estrangeiros e as empresas vão embora.
Não é uma tentativa de proteger a biodiversidade do país para que ela não seja explorada sem que a população receba os dividendos?
Nenhum pesquisador estrangeiro quer ver um país ser explorado. Mas muitos países foram longe demais ao se proteger, pensando que todo o mundo quer explorá-los. Eu não critico a decisão do Brasil de proteger seus próprios recursos, é uma decisão que cabe ao país. Mas é fato que o Brasil não tem infraestrutura para desenvolver sozinho esse tipo de pesquisa. Descobrir um novo medicamento e colocá-lo no mercado custa US$ 1 bilhão. Como o Brasil vai algum dia desenvolver uma droga e ter lucros se não tem dinheiro para investir? Vocês deveriam firmar parcerias em que os cientistas brasileiros fossem beneficiados, em que houvesse uma troca de experiência e de técnicas. Talvez o governo tenha decidido esperar até que haja tecnologia suficiente no Brasil para que o país possa explorar esse potencial sozinho. A pergunta é: é isso mesmo que o Brasil quer?
Quais são as consequências de uma política tão restritiva para o uso da biodiversidade brasileira em pesquisas? O governo brasileiro desencorajou investimentos internacionais e desencorajou pessoas como eu, cientistas que têm muitas informações para compartilhar com os brasileiros, a trabalhar com o Brasil. A Austrália, há 15 anos, fez a mesma coisa: fechou o país para a colaboração internacional. Antes disso, tínhamos muitos pesquisadores australianos vindo para a Califórnia para aprender novas técnicas e trabalhar com a gente. Agora, não há praticamente nenhum. Esse tipo de postura tem um impacto enorme. Não afeta apenas o intercâmbio científico entre os países, entre a ciência americana e a brasileira. Mas também tem um impacto enorme na descoberta de novas drogas.
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