"Destruir
matas virgens, como até agora se tem praticado no Brasil, é crime horrendo e
grande insulto feito à mesma natureza. Que defesa produziremos no tribunal da
Razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?" O
texto, de 1821, um ano antes da Independência do Brasil, mostra que a
preocupação com a destruição de florestas no território nacional é mais antiga
do que o próprio Estado brasileiro.
O
autor do alerta contra o desmatamento, redigido há quase 200 anos, não entraria
para a História como ecologista, e sim como um dos fundadores do Estado
brasileiro: José Bonifácio de Andrada e Silva, o chamado Patriarca da
Independência.
Nas
escolas, estudantes aprendem que José Bonifácio, filho de uma família abastada
e nascido em 1763 na cidade de Santos (SP), é considerado um dos mais
importantes estadistas brasileiros e personagem fundamental no processo de
Independência do Brasil. Mas a biografia dele vai além da política: ele é
também um dos precursores na defesa das florestas no território nacional.
"Bonifácio
foi um personagem muito importante, apesar de ainda pouco reconhecido, na
construção dessa preocupação com o ambiente e o futuro das florestas em escala
mundial", diz o historiador José Augusto Pádua, professor do Instituto de
História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é um dos
coordenadores do Laboratório de História e Natureza.
Filho
de uma família rica - seu pai era importante funcionário da Coroa portuguesa -
o jovem Bonifácio foi estudar na Universidade de Coimbra, onde teve uma sólida
formação em Direito, Filosofia Natural e Matemática. Um de seus professores em
Portugal foi o italiano Domênico Vandelli, especialista em História Natural e
Botânica e que exerceu forte influência sobre o estudante brasileiro, que se
tornou pesquisador naturalista, mineralogista e professor em Portugal durante
muitos anos, além de exercer cargos públicos no governo português. Entre eles,
a direção dos bosques nacionais.
"Ele
explicava com detalhes sobre a importância de preservar os bosques do Reino.
Isso não era nada comum nos tempos dele", explica o historiador Jorge
Caldeira, organizador da biografia José Bonifácio de Andrada e Silva, da
Coleção Formadores do Brasil. "Era um ecologista prático, bastante apurado
para os dias de hoje. Tanto é que seu primeiro trabalho científico foi em
defesa da preservação das baleias", completa Caldeira.
O
texto citado por Caldeira foi publicado por José Bonifácio em 1790. Trata-se do
Memória sobre a pesca da baleia e a extração do seu azeite, publicado pela
Academia das Ciências de Lisboa. No texto, o político e estudioso alertava para
o pouco retorno econômico da atividade de caça à baleia para extração do óleo,
frente ao poder destrutivo do meio ambiente e a consequente redução do número
de baleias na
costa brasileira.
"Dentre
outros naturalistas da época, José Bonifácio criticava a caça predatória da
baleia, por julgá-la antieconômica, assim como as grandes propriedades
monocultoras. Apreciador das matas e madeiras brasileiras, alinhava-se com
estudiosos que, desde a fundação dos primeiros jardins botânicos no século 18,
valorizavam o plantio de espécies raras", explica a historiadora Mary Del
Priore, autora do livro As Vidas de José Bonifácio (Estação Brasil), que
retrata a vida do Patriarca da Independência. "Ele era também favorável à
inserção de índios e negros na sociedade depois de 'civilizados'",
completa a historiadora.
De
volta ao Brasil, em 1819, José Bonifácio tornou-se ministro e conselheiro do
Príncipe Regente e futuro imperador D. Pedro 1º. Foi ele quem incentivou o
monarca a proclamar a Independência do Brasil, em 1822, e integrou o primeiro
escalão de dirigentes da nova nação. Entre outras atribuições, organizou a
resistência do novo governo independente aos movimentos contra a separação de
Portugal que surgiram na época em várias partes do país.
Apenas
alguns meses após seu retorno ao Brasil, Bonifácio embrenhou-se nas matas do
Estado de São Paulo junto com seu irmão, Martim Francisco, para aprofundar seus
estudos naturalistas, em especial na Mata Atlântica que na época dominava o
território paulista, mas já sofria os efeitos do desmatamento para expansão das
lavouras e da pecuária.
Logo
nos primeiros dias de expedição, o viajante lamenta o "miserável estado em
que se acham os rios Tietê e Tamandataí, sem margens nem leitos fixos,
sangrados em toda parte por sarjetas, que formam lagos que inundam essa bela
planície." Nos arredores da Vila de Itu, observa que "todas as antigas
matas foram barbaramente destruídas com fogo e machado."
Em
1821, quando o Brasil estava na condição de Reino Unido a Portugal, Bonifácio
defendeu, em um artigo chamado Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório
para os Senhores Deputados da Província de São Paulo, a criação de uma
"Direção Geral de Economia Política", que seria responsável por obras
públicas, minas, bosques, agricultura e fábricas.
Essa
política integrada desenhada por José Bonifácio para a administração do Brasil,
na sua visão, seria responsável pela preservação das riquezas naturais
brasileiras, em especial os rios, matas e densas florestas que, na opinião do
político e naturalista, eram fundamentais para a saúde do território nacional.
Seria um grande ministério reunindo as áreas de meio ambiente, infraestrutura e
agricultura. A proposta, porém, nunca saiu do papel e o Brasil tornou-se
independente de Portugal em 1822.
"As
preocupações e propostas ambientais de José Bonifácio estavam inseridas na
discussão geral sobre o futuro do Brasil. Creio que ele propunha um ministério
de planejamento geral da economia no sentido de uma relação mais racional com a
natureza. Ou seja, todas as atividades econômicas estariam conectadas com o
objetivo de acabar com a devastação e o desperdício, tratando o mundo natural
de uma maneira mais cuidadosa e cientificamente inteligente", diz Augusto Pádua.
"Mesmo
que o contexto atual seja tão diferente, creio que seria um grande avanço se
pudéssemos retomar, ou de fato reinventar, essa maneira de enxergar o cuidado
ambiental como eixo de todas as ações de governo relativas às atividades
produtivas", completa o historiador da UFRJ.
Na
Assembleia Constituinte de 1823, Bonifácio, eleito deputado constituinte, levou
ao Parlamento ideias e emendas muito avançadas para a época, como o fim da
escravidão, instituição de uma reforma agrária, preservação das matas e rios
brasileiros, obrigação de conservar uma parte das propriedades rurais com
florestas nativas, direito de voto aos analfabetos e até a mudança da capital
do país para o Planalto Central, algo que só se tornaria realidade mais de um
século depois, em abril de 1960, no governo do presidente Juscelino Kubitschek.
Para
Bonifácio, a criação de uma grande nação só seria possível caso fossem
superados problemas estruturais herdados do passado colonial. O principal deles
era a escravidão. "Uma novidade muito interessante no seu pensamento foi
justamente estabelecer uma relação de causalidade entre o domínio da escravidão
e as dinâmicas de desflorestamento, degradação dos solos e destruição da fauna
e da flora, diz Augusto Pádua.
"Ele
não via a escravidão apenas como uma técnica, mas sim com algo parecido com o
que veio a ser chamado mais tarde de modo de produção. A continuidade da
escravidão levaria à destruição do grande trunfo com o qual o Brasil poderia
contar para o seu progresso, que era a riqueza natural", completa o
professor da UFRJ.
Ideias
tão avançadas para a época custaram a José Bonifácio muitas inimizades entre os
poderosos da época, principalmente a elite agrária e política conservadora, e o
rompimento com o próprio imperador D. Pedro 1º. Após ser demitido do governo,
Bonifácio é exilado e parte para uma longa temporada na Europa, de onde só
retornaria em 1829, após se reaproximar do imperador e ser nomeado tutor do seu
filho, D. Pedro 2º.
De
acordo com os especialistas, em textos publicados ao longo de sua carreira na
Europa e no Brasil, em especial entre 1790 e 1823, Bonifácio construiu o que
hoje chamaríamos de agenda ambiental e são importantes para entender a história
do meio ambiente no Brasil.
"Ele
foi, sem dúvida, um homem muito preocupado com os recursos naturais, isto em um
tempo que praticamente não existia consciência de preservação ambiental",
diz o desembargador aposentado e professor de Direito Ambiental na PUC-PR,
Vladimir Passos de Freitas. "Eu não posso afirmar que foi o único, porque
antes dele Portugal criou em Ilhéus, na então província da Bahia, um cargo de
Juiz Conservador das Matas. Mas posso dizer que foi o primeiro a aprofundar-se
em temas ambientalistas variados", completa Passos de Freitas.
Um
dos artigos mais famosos de José Bonifácio, de 1823, atesta que, caso o Brasil
não tomasse providências para preservar suas florestas, rios e demais recursos
naturais, em menos de dois séculos estaria convertidos nos "páramos e
desertos áridos da Líbia". "Virá então este dia, (dia terrível e
fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes
cometidos", escreveu o Patriarca da Independência. Há quase dois séculos.
Marcus
LopesDe São Paulo para a BBC News Brasil